Viver em obras : entre desastres e esperanças : biopolítica do sacrifício e cotidiano no espaço de vida da Grande Cruzeiro (POA-RS)

Abstract

A presente Tese apresenta análise acerca da implantação e execução de uma obra viária na cidade de Porto Alegre, consistente na duplicação da Avenida Cruzeiro do Sul, na Grande Vila Cruzeiro, com suas devidas implicações sobre o espaço de vida das comunidades impactadas. Para a produção de resultados nos utilizamos de pesquisa bibliográfica e documental, entrevistas, observação empírica e trabalhos de campo, através de uma pesquisa participante. Nosso método científico e abordagem epistemológica combina elementos do materialismo-histórico-dialético e da fenomenologia-hermenêutica, apoiados pelo escopo conceitual da filosofia da diferença. Apresentamos algumas coimplicações entre o atual processo de reestruturação do espaço urbano em Porto Alegre, especialmente sobre a periferia da cidade, e os efeitos gerados sobre o cotidiano das populações afetadas, observando as mudanças nas suas relações socioespaciais a partir da adaptação ao contexto de precarização do seu espaço de vida, imposto pelo Poder Público através da Prefeitura de Porto Alegre, que determinou e gerencia as obras. A pesquisa se concentra na área da Grande Cruzeiro, complexo de vilas que conta com mais de 300 mil habitantes, onde ocorreu a remoção de 1580 famílias para duplicação de uma via de acesso à Zona Sul da cidade, conformando um plano viário de avenidas radiais. Essa foi originalmente uma das chamadas “Obras da Copa”, a qual começou no ano de 2012, com o início da remoção das famílias, sendo prometida a sua conclusão para junho de 2014, por ocasião da Copa do Mundo. Entretanto, no ano de 2022, dez anos após iniciado o processo, a mesma continua longe de conclusão, sem previsão garantida de término, impactando profundamente o cotidiano, abalando drasticamente a paisagem e destruindo o espaço de vida da comunidade atingida, o que vêm provocando efeitos deletérios diversos sobre sua sociabilidade e experiência. Para compreender a questão propomos a tese de que estão sendo aplicados sobre a comunidade elementos da biopolítica, estratégia de poder governamental que se dá sobre a gestão tanto da vida cotidiana como dos desejos da população, gestão essa que racionaliza e aplica pontualmente uma economia política sobre a gestão do espaço, fazendo-se valer de discursos, e que acaba por gerar, como resultado, a produção política e social de um desastre, instalando uma zona de sacrifício passageira para que se faça possível, a partir daí, a criação de um meio ideal tanto ao controle da população local quanto para atender às demandas de circulação do capital na cidade. Estabelecemos assim coimplicações entre as demandas globais do capitalismo e as repercussões locais das políticas urbanas metropolitanas. Constatamos que, ante as dificuldades de se viver em obras por mais de uma década, os moradores da comunidade convivem e se adaptam forçosamente às circunstâncias e, embora com revolta ante a política e descrença nas instituições, os mesmos nutrem esperança de ver a obra terminada, sua qualidade de vida restituída e incrementada, e o peso do seu cotidiano finalmente atenuado, a partir do momento em que não precisem mais viver em obras.

This thesis presents an analysis about the implementation and execution of an urban redevelopment road work in the city of Porto Alegre, consisting of the duplication of Cruzeiro do Sul Avenue, in Great Vila Cruzeiro, with its due implications for the living space of the impacted communities. For the production of results, we used bibliographic and documental research, interviews, empirical observation and fieldwork, through participant survey. Our scientific method and epistemological approach combine elements of dialectical-historical-materialism and hermeneutic-phenomenology, supported by the conceptual scope of the philosophy of difference. We present some co-implications between the current restructuring urban space process in Porto Alegre, especially on the city outskirts, and the effects generated on the daily life of affected populations, observing the changes in their socio-spatial relations as from the adaptation to their living space precariousness context, imposed by the Public Power through the Porto Alegre City Hall, which determined and manages the road works. The research focuses on the Great Cruzeiro area, a complex of villages with more than 300,000 inhabitants, where 1580 families were removed to duplicate an access road to the South Side of the city, forming a road plan of radial avenues. This was originally one of the so-called “World Cup Construction Works”, which began in 2012, with the beginning of the removal of families, and completion had been promised for June 2014, on the occasion of the World Cup. However, in 2022, ten years after the beginning of the process, it is still far from completion, with no end date guaranteed, profoundly impacting daily life, drastically shaking the landscape and destroying the affected community living space, which has been causing several deleterious effects on their sociability and experience. In order to understand the issue, we propose the thesis that elements of biopolitics are being applied to the community, a governmental power strategy that takes place over the management of both everyday life and population desires, a management that rationalizes and punctually applies a political economy over the space management, making use of speeches, and, as a result, ends up generating the political and social production of a disaster, installing a temporary sacrifice zone to, from there, enable the creation of an ideal means both to control the local population and to meet the demands of circulation of capital in the city. We thus establish co-implications between the global demands of capitalism and the local repercussions of metropolitan urban policies. We found that, faced with difficulties of living in construction works for more than a decade, the residents of the community coexist and forcibly adapt themselves to the circumstances and, although revolted by politics and with disbelief in the institutions, they nourish hope of seeing the work finished, their quality of life restored and improved, and the weight of their daily lives finally attenuated, from the moment they no longer need to live in construction works.